Imagine começar a sentir fraqueza nas mãos, dificuldades para caminhar e uma dor persistente no pescoço, sem entender exatamente o que está acontecendo. Esses sintomas podem ser sinais de uma condição séria chamada mielopatia cervical, que afeta a medula espinhal na região do pescoço. Ao longo deste artigo, exploraremos em detalhes o que é a mielopatia cervical, seus sintomas e como tratar essa condição para restaurar a função e aliviar o desconforto.
O que é?
A coluna vertebral possui uma função muito importante: além de base estrutural (que é manter a pessoa em pé), ela também é responsável por proteger uma estrutura mais nobre: a medula espinhal. Diferentemente da famosa medula óssea, que é um tecido que produz sangue dentro do osso, a medula espinhal é um nervo muito importante pois através dela se dá a troca de informações entre o corpo e o cérebro. De certa forma, ela é considerada uma “parte do cérebro”, sendo chamada de neurônio motor superior. A mielopatia cervical é uma condição que pode ser séria e afeta a medula espinhal geralmente na região do pescoço, onde se localiza a coluna cervical. Essa doença ocorre quando a medula espinhal é comprimida devido a diversas alterações da própria coluna, que levam a uma diminuição do diâmetro do espaço da coluna por onde a medula passa (figura 1). Essas mudanças podem provocar uma ampla gama de sintomas, impactando tanto a função motora quanto a sensorial. Compreender essa condição e suas implicações é essencial para quem busca um tratamento eficaz e um diagnóstico preciso.
Figura 1: Imagem de ressonância magnética onde se observa a coluna cervical com presença de duas hérnias, localizadas entre as vértebras cervical número 3 e cervical numero 4 assim como entre a número 4 e a número 5. Na imagem da esquerda as hérnias comprimem a medula espinhal e na imagem da direita (após uma cirurgia para retirada das hérnias, feita com sucesso), podemos verificar ela com imagem branca que significa uma lesão de aspecto sequelar chamada mielomalácea.
Figura 2: Ressonância magnética do mesmo paciente da figura 1, porém pela visão do eixo ( olhando-se por cima) onde se observa a compressão da medula antes de se operar e o resultado após a cirurgia.
Causas da Mielopatia Cervical
Essa compressão pode ser causada por várias condições, como:
- Hérnia de disco cervical: Quando o disco intervertebral, localizado entre as vértebras, se desloca e pressiona a medula espinhal (figura 3)
Figura 3: Hérnia de disco em coluna cervical no nível c6c7. Percebe-se que os outros níveis não apresentam alterações significativas.
- Espondilose cervical: O desgaste das vértebras e discos cervicais que ocorre com o envelhecimento, resultando em formação de esporões ósseos (osteófitos) que podem ou não, comprimir a medula espinhal (figura 4)
Figura 4: Presença de alterações difusas pela coluna, denominada espondilose
- Estenose do canal vertebral: Estreitamento do canal vertebral, onde a medula espinhal está alojada, levando à compressão (figura 5)
Figura 5: Ressonância magnética de coluna cervical em paciente com diminuição global do diâmetro do canal vertebral levando a compressão da medula e mielomalácea.
- Trauma: Lesões na coluna cervical, como fraturas ou deslocamentos, que podem causar compressão direta da medula espinhal (figura 6)
Figura 6: fratura da sétima vértebra cervical com retropulsão do muro posterior e contato com a medula.
- Tumores: Lesões tumorais podem causar compressões, tanto pela sua expansão como por eventuais fraturas (figura 7).
Figura 7: lesão metastática de axis (C2) em paciente com câncer de mama, levando a expansão da cortical óssea e contato com a medula em região cervical alta.
- Miscelânea: muitas vezes, o paciente apresenta quadro composto por hérnias com desgaste das articulações e hipertrofia (aumento) ligamentar gerando uma estenose (estreitamento) ou seja, o quadro é amplo.
Manifestação:
A mielopatia cervical pode manifestar-se através de uma variedade de sintomas, que incluem fraqueza nos músculos, sensação de formigamento ou dormência em diferentes partes do corpo, dificuldades de coordenação motora, dor na região do pescoço e, em estágios mais avançados, problemas no controle da bexiga e do intestino.
Muitas vezes a percepção do paciente é postergada pelo fato dos sintomas serem insidiosos (lentos). A perda da capacidade para realizar atividades corriqueiras como assinar o nome, abrir a porta de casa ou pegar um comprimido, pode ser o sintoma que faz o paciente procurar auxílio.
Diagnóstico:
O diagnóstico de mielopatia cervical é realizado por meio de uma combinação de histórico clínico, exame físico e exames de imagem, como:
- Ressonância magnética: Fornece imagens detalhadas da medula espinhal e pode mostrar a extensão da compressão.
- Tomografia computadorizada: Útil para avaliar a estrutura óssea da coluna cervical e realizar a estratégia cirúrgica.
- Radiografias: Podem mostrar desalinhamento das vértebras ou sinais de espondilose. São muito importantes para a programação cirúrgica, além de auxiliar na avaliação dos equilíbrios entre as porções da coluna (cervical, torácica e lombar).
Tratamento :
O tratamento da mielopatia cervical depende da gravidade dos sintomas e do grau de compressão da medula espinhal. As opções incluem:
1) Em casos leves, pode-se optar por fisioterapia, medicamentos para controle da dor e inflamação, além de modificações nas atividades diárias.
2) Quando há compressão significativa ou deterioração neurológica, a cirurgia é geralmente recomendada para descomprimir a medula espinhal e estabilizar a coluna cervical. Isso é muito importante pois algumas das alterações que o paciente pode sentir, irão assumir uma característica sequelar, ou seja, definitiva. Desse modo, caso a medula não seja descomprimida, os sintomas poderão continuar progredindo. As técnicas cirúrgicas podem variar, incluindo a remoção de discos herniados, esporões ósseos, ou a fusão das vértebras.
O tratamento cirúrgico deve ser programado de acordo com alguns fatores. Quantos níveis (discos) estão acometidos? Qual o sentido da compressão (de anterior para posterior ou de posterior para anterior)? Se a estrutura que comprime a medula é óssea ou mole etc…
Via Anterior
É a via de acesso mais comum para a coluna cervical. Realizada por uma incisão na região anterior do pescoço (feita pela frente), é uma cirurgia relativamente rápida e pouco invasiva pois a lesão muscular é mínima. O cirurgião tem acesso direto ao disco intervertebral que é retirado permitindo a descompressão direta da medula e das raízes. Geralmente o paciente fica internado por 2 dias e vai para casa andando com um colete cervical que e retirado após 3 a 4 semanas. Por exemplo em um paciente com compressão medular focal, que ocorre do disco intervertebral não calcificado, uma cirurgia mais simples pode ser eficiente para resolver o problema definitivamente (fig 8).
Figura 8: Hérnia cervical C5C6 com compressão medular que iniciava processo de mielomalacia em paciente com perda motora. Foi realizada cirurgia de descompressão e fusão com recuperação total da força muscular e sensibilidade. A cirurgia realizada foi por via anterior no pescoço chamada de discectomia cervical anterior e fusão (ACDF ANTERIOR CERVICAL DISCECTOMY AND FUSION). Procedimento seguro, rápido e com recuperação que costuma ser muito rápida. O paciente geralmente tem alta dois dias após o procedimento e retorna as suas atividades em 2 semanas.
Via Posterior
Outra técnica cirúrgica, é reservada para os casos em que o paciente apresenta muitos níveis comprimidos ou em que a compressão se dá de posterior para anterior (algo que esta apertando a medula de traz para frente) ou quando mais de 3 segmentos precisam ser descomprimidos (figura 9). É o caso por exemplo das estenoses causadas por um espessamento dos ligamentos que “correm” por dentro da coluna, juntamente com a medula. O cirurgião descomprime a medula pela retirada da lâmina vertebral (uma espécie de tampa, que forma o arco posterior da coluna (figura 10).
Figura 9: exemplo de procedimento de laminectomia cervical com artrodese. Na imagem A e B, verifica-se a imagem de ressonância magnética de um paciente com estenose entre C3eC4 C5C6 e C6C7 com um segmento interposto entre eles (C4C5). Nas imagens C e D, radiografias onde se observa a ausência de apófises espinhosas associada a presença de parafusos de massa lateral demonstrando a descompressão da medula espinhal.
Figura 10: técnica de descompressão medular cervical posterior por laminectomia. A: incisão mediana posterior; B: afastamento da musculatura com exposição das lâminas vertebrais em C; D: retirada das lâminas com descompressão dos elementos neurais.
Cirurgia para Mielopatia cervical: você será operado (a)? O que precisa saber?
A cirurgia para a mielopatia visa a melhora do quadro de perda de força nos braços, mãos e pernas. Em alguns casos, observamos também uma melhora do quadro de dor nas costas, embora isso seja variável. Os resultados estão associados a vários fatores, dentre eles o tempo de evolução da doença antes da cirurgia e o grau de perda de força e de sensibilidade.
Pacientes com outras doenças (como fibromialgia ou alterações psiquiátricas por exemplo), podem ter resultados menos satisfatórios. Além disso, fumantes, sedentários, obesos mórbidos e pacientes com múltiplas doenças na coluna também podem ter resultados variáveis.
No período que antecede a cirurgia em 3 meses e após 6 meses, o paciente deve se preocupar em perder peso no caso de obesidade, parar com o cigarro e praticar atividades físicas que tolera.
O hospital entrará em contato com o paciente (geralmente um dia antes) para confirmar o agendamento cirúrgico e explicar o que levar para a cirurgia.
Sempre levar:
- Exames de sangue, exames do coração e exames de imagem da coluna.
- As avaliações quando solicitadas, por exemplo: cardiologista.
- Produtos de higiene pessoal como escova de dentes, medicamentos que usa em casa, pijamas etc.. podem ser úteis.
Para a maioria das cirurgias os pacientes devem respeitar um jejum de 8h (para sólidos e líquidos) e parar com medicações especificas como AAS e anticoagulantes (sempre a critério dos médicos que estão acompanhando!)
Os pacientes serão orientados nesse contato sobre essas informações, assim como quanto ao horário de chegada ao hospital. Ao chegar, haverá uma recepção, onde serão solicitados os documentos pessoais, assim como os documentos referentes a cirurgia e avaliação dos exames. O processo é semelhante ao “check in” de um hotel e o paciente geralmente é avaliado por uma equipe de enfermagem e conduzido a um leito que pode ou não ser o leito no qual ele ficará após o procedimento.
O médico cirurgião ou um membro de sua equipe, passará no leito para realizar a confirmação de que se trata do paciente correto, assim como os detalhes cirúrgicos e esclarecer eventuais dúvidas que possam ter surgido entre a ultima consulta e o dia da cirurgia.
Algum tempo depois, o paciente é conduzido ao centro cirúrgico onde seu médico o espera e o acompanha até a sala onde será realizado o procedimento. Esta é uma etapa onde gosto de ficar junto com meus pacientes até o momento em que é anestesiado, pois sei que essa proximidade gera muita segurança para a pessoa que vai passar por uma cirurgia e está sozinha. Isso faz a diferença para o paciente e para os familiares pois podem confiar que não ficarão sem alguém conhecido em nenhum momento.
A cirurgia é realizada e após seu término, o paciente fica em uma sala de recuperação anestésica por alguns minutos quando, após estar mais acordado da anestesia, é conduzido para a UTI (geralmente para ficar com atenção total por uma questão de segurança).
Geralmente no dia seguinte a cirurgia, é estimulado que o paciente caminhe (com ou sem auxilio de um(a) fisioterapeuta e que fique mais tempo sentado. Pode ter sido necessária a colocação de um dreno, o que é incomum. O paciente estimulado a ficar mais tempo sentado e no segundo dia o dreno costuma ser retirado. A partir daí, considera-se a alta para casa.
Em casa:
Ao chegar em casa, o paciente deverá ter um cuidado muito importante com a ferida operatória. O cirurgião irá orientar por escrito quais medicamentos deverão ser tomados e como serão dispensados os cuidados com a ferida e o curativo. Geralmente é estimulado que o paciente utilize um colar cervical para que haja maior estabilidade do segmento vertebral operado. Este colete pode ser do tipo Philadelphia ou colar de espuma comum. Evitar pegar peso, e restrição de atividades física e dirigir.
A fisioterapia pode ser incentivada a partir do primeiro dia pós operatório estimulando-se o fortalecimento de membros inferiores e superiores , treino de marcha e analgesia.
Geralmente essas atividades irão voltar a fazer parte da sua rotina de maneira progressiva, esperando-se que por volta dos 90 dias o paciente já esteja apto a realizar a maioria delas.
Riscos:
As cirurgias de coluna são procedimentos complexos e indicados em último caso, quando todos os outros métodos de tratamento falharam. Representam uma alternativa segura quando comparada aos riscos de não se operar mediante patologias especificas. Porem apresentam riscos reais que devem ser entendidos pelos pacientes. Lembramos que quando há indicação cirúrgica, não operar pode significar a perda dos movimentos de maneira definitiva assim como a paralisia progressiva da musculatura que promove a respiração, com consequências gravíssimas. Mas existem riscos para a cirurgia. Em vários estudos, as taxas gerais de morbidade para ACDF variaram de 13,2% a 19,3%. Estas incluíram em ordem decrescente; disfagia ou dificuldade para engolir (1,7%-9,5%), hematoma pós-operatório (0,4%-5,6% com nova cirurgia necessária em 2,4% de 5,6% e hematoma interno na região da medula 0,9%), PIORA de mielopatia (0,2%-3,3%), paralisia sintomática do nervo laríngeo recorrente que é responsável pela fala e por parte da respiração (0,9%-3,1%), vazamento de líquido cefalorraquidiano (LCR) (0,5%-1,7%), infecção de ferida (0,1-0,9%-1,6%), aumento da radiculopatia ou seja, piora da dor ou da força muscular no braço, cotovelo, punho e mãos (1,3%), síndrome de Horner (0,06%-1,1%), insuficiência respiratória (1,1%), perfuração esofágica (0,3%-0,9%, com uma taxa de mortalidade de 0,1%) e falha do material utilizado na cirurgia (0,1%-0,9%). Houve apenas relatos de casos isolados de oclusão da veia jugular interna e lesão do nervo frênico. A pseudoartrose (que é a falta de “calcificação”da cirurgia, ocorreu na ACDF e foi dependente do número de níveis fundidos; 0-4,3% (1 nível), 24% (2 níveis), 42% (3 níveis) a 56% (4 níveis). A taxa de reoperação para pseudoartrose sintomática foi de 11,1%. As taxas de readmissão para ACDF variaram de 5,1% (30 dias) a 7,7% (90 dias de pós-operatório).
EPSTEIN, Nancy E. A review of complication rates for anterior cervical diskectomy and fusion (ACDF). Surgical neurology international, v. 10, 2019.
Conclusão
A mielopatia cervical é uma condição que exige atenção imediata devido ao risco de danos neurológicos permanentes. Se você ou alguém que você conhece está apresentando sintomas, é essencial buscar uma avaliação médica o quanto antes. Com o tratamento adequado, é possível aliviar os sintomas, prevenir a progressão da doença e melhorar a qualidade de vida.
Conte comigo para cuidar da sua saúde.
Grande abraço,
Dr. Guilherme Foizer
Cirurgião da coluna | CRM 114.430